Iniciativa foi colocada em prática por psicólogos da Defensoria Pública para ajudar detentas a aliviar a tensão do ambiente.

A frase atribuída ao poeta Mário Quintana – “Livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas” – faz ainda mais sentido quando se pensa em alguém que cometeu um crime e, ao mesmo tempo em que deve pagar por isso, precisa iniciar um árduo caminho para se reintegrar à sociedade. É o caso das detentas do setor de carceragem da 19ª Subdivisão Policial (SDP). Elas participam de um projeto de leitura organizado pela equipe multidisciplinar da Defensoria Pública do Paraná em Francisco Beltrão.
A leitura é uma válvula de escape para aliviar a tensão entre as presas que aguardam a liberdade. Há mulheres que têm apenas alguns dias de encarceramento, podem sair a qualquer momento, pois estão na condição de prisão provisória. Outras, já condenadas, terão longos anos pela frente.
Com autorização da coordenação da carceragem, a cada duas semanas os profissionais da Defensoria vão à cadeia para levar livros e promover o diálogo com as presas. “O objetivo é proporcionar a continuidade do desenvolvimento dessa população, apesar da reclusão, e possibilitar ainda a escuta e o manejo de questões urgentes nesse ambiente tais como: família, filhos, saúde, futuro e muitas outras questões que surgem durante o projeto”, explica a psicóloga Delair Spezia Pandolfo, responsável pela iniciativa juntamente com o psicólogo João Paulo Howeler. Como efeito imediato, o projeto tem ajudado a diminuir a tensão dentro do setor de carceragem.
Josué Andreata, chefe da 9ª Regional de Cadeias Públicas, diz que a intenção, com o tempo, é montar uma pequena biblioteca com uma boa variedade de livros. A Defensoria Pública já levou uma caixa com dezenas de livros e um armário para guardá-los. A cadeia pública, até o início desta semana, contava com 93 presos, sendo 87 homens e 6 mulheres. O estabelecimento está em condição de superlotação, já que a capacidade original é para 40 vagas.
Arrecadação
Os livros emprestados às presas são provenientes de doações de entidades religiosas, centros universitários, editoras, empresas e pessoas físicas. Desde novembro do ano passado, a equipe da Defensoria vem trabalhando esta ideia. Primeiramente, ouviu-se as detentas para saber que tipos de livros elas gostariam de ter acesso. Depois, iniciou-se um processo de sensibilização das instituições para a doação do material. Os temas variam: tem livro com temática religiosa, material didático, revista, romance, best-seller e até de conteúdo profissionalizante. Funciona como uma biblioteca, na qual a pessoa empresta um título, lê e devolve. A psicóloga Delair afirma que a necessidade agora é para ter maior variedade de títulos.
De acordo com ela, como a cadeia está lotada, o objetivo é que os presos passem o tempo de forma positiva. O projeto começou com as mulheres e, dependendo do resultado, poderá ser estendido para os homens. “A ideia é que mesmo presos eles continuem evoluindo intelectual e emocionalmente.”
“Lendo a gente consegue sair da cadeia”
Normalmente, a carceragem abriga uma dúzia de presas, que ficam alojadas em três pequenas celas, e um pátio de sol nos fundos. O ambiente ainda é composto por uma lavanderia e um setor de costura – criado pela direção da carceragem e da delegacia – onde elas têm oportunidade de trabalhar e reduzir a pena.
Na segunda-feira, 20, quando a reportagem do JdeB teve autorização para entrar e fazer entrevistas, elas estavam sentadas, lendo e conversando. Augusta*, que cumpre pena de 10 anos, trabalha durante o dia, confeccionando uniformes (camisetas e calças) para presos da Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão, e à noite se dedica à leitura. Em janeiro, ela leu três livros, um romance e dois de autoajuda. “Todas depois têm a oportunidade de contar o que leram e isso tem ajudado bastante”, avalia.
Flávia*, condenada a seis anos, está progredindo para o regime de prisão domiciliar e aguarda a liberação de uma tornozeleira eletrônica para ser solta. Ela leu quatro livros em um mês e quase bateu a média nacional de leitura, que é de 4,9 livros por ano. “Aqui não tem muito o que fazer, então a gente lê”, brinca. E acrescenta: “Só não lemos mais porque no final do ano o pessoal da Defensoria entrou em férias e demorou para trocar os livros”.
Ela diz que mais gostou, assim como a maioria das colegas, de obras como Cinquenta Tons de Cinza, Poder da Palavra, Casamento Blindado e Mente Positiva. “É muito difícil cumprir pena, lendo a gente consegue sair da cadeia e imaginar um monte de coisas.” Fora da cadeia, ela praticamente não lia.
Sabrina* leu os livros Poder da Fé, Poder do Silêncio e Mente Positiva. “São livros que ajudam a gente a refletir sobre o mundo lá fora, sobre a vida que a gente levava e de que forma podemos melhorar quando sair daqui. A leitura me ajudou a ter coragem pra encarar os problemas e ter mais fé e entender que tudo tem um motivo.” Ela é presa provisória e está fechada há três meses e meio.
*Os nomes das presas são fictícios.
Depois de viajar nos livros, vem a reflexão
“Além do compartilhamento dos livros, vamos à cadeia a cada 15 ou 20 dias, nos reunimos com as mulheres e fazemos a troca dos livros. Uma vez que elas escolhem o que pretendem ler, nesse período fazem a leitura e no próximo encontro temos a oportunidade de ouvi-las quanto às suas experiências de leitura. Nesses encontros, ainda, abre-se espaço para que elas tragam temáticas do seu interesse, para que sejam desenvolvidas na conversa. No último encontro, por exemplo, elas abordaram suas dificuldades com as relações interpessoais. Elas estão conseguindo discutir formas mais positivas de se relacionar e refletindo sobre o que as levou ao aprisionamento. Na próxima reunião, então, vamos conversar com sobre isso”, explica Delair. A Defensoria já arrecadou em torno de 300 livros, boa parte deles doados pela Federação Espírita do Paraná, e muitos títulos são repetidos.
A psicóloga conta que durante o projeto foi detectado um problema de visão de uma das presas. “Ela queria ler, mas disse que não enxergava. Então a gente está fazendo o encaminhamento para uma consulta e depois irá buscar parceiros para viabilizar um óculos.”
Em março, será discutida com a direção da unidade carcerária uma ampliação do projeto, com o objetivo de levar o iniciativo também para a ala masculina, que é bem maior e está superlotada. “Vamos ver a possibilidade, discutir com o setor da carceragem, para que também não seja criado um problema operacional para os agentes, em virtude justamente da superlotação.” *Com informações da assessoria de imprensa da Defensoria Pública.
Na cadeia, pena não reduz pela leitura
Há uma recomendação (44/2013) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que propõe, nos presídios estaduais e federais, a instituição de projetos específicos de incentivo à remição pela leitura. Na Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão, os presos já podem diminuir sua pena estudando, mas na cadeia pública não é possível implantar o projeto.
No Paraná, a Lei Estadual n° 17.329 instituiu a remição da pena por estudo por meio da leitura em 2012. Porém, Andreata afirma que a coordenação tem que ser vinculada a uma instituição de ensino (na PEFB há uma unidade do Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos – Ceebja). “Além disso, é uma forma de não se incentivar que os presos cumpram pena em cadeia, embora muitos sejam condenados, aqui deveriam ficar apenas presos provisórios.” Na carceragem da 19ª SDP, 29 presos já estão condenados.